Vamos, pois, dar início ŕ nossa dissertaçăo começando por assinalar e salientar um facto com que deparámos, no decorrer de leituras que fizemos: tem-se feito uma grande baralhada entre a origem da povoaçăo e a origem do seu nome. E certos autores năo se tęm apercebido de que, se é difícil, ou mesmo quase impossível, explicar a primeira, năo há nada de difícil na explicaçăo da segunda. É esta explicaçăo que, dentro dos nossos limitados conhecimentos filológicos, vamos tentar fazer, o mais claramente que nos for possível, antecedendo-a de algumas notas extraídas das obras que nos foi dado ler, notas que săo uma prova evidente da baralhada a que aludimos. O Pe. António Carvalho da Costa, numa sua obra a que chama Corografia Portuguesa, dedicada ŕ Rainha Maria Ana de Áustria, e publicada em 1709, tem, no livro segundo, tratado I - Da Comarca da Villa de Torres Vedras, capítulo I - Da descriçăo desta Villa: “No Arcebispado de Lisboa, sete legoas desta cidade para o Norte, & cinco ao nascente da Villa de Peniche, em logar baixo que cercam cinco montes, tem seu assento esta nobre Villa, a que os Godos e Suevos chamaram antigamente Turres Veteres (para diferença da Villa de Torres Novas) que é o mesmo que Torres Velhas, de que ainda hoje existe huma ára a parte do castello...”.
Joăo Maria Baptista, na Chorographia Moderna do Reino de Portugal, publicada em 1876, diz, na página 801, do volume IV, o seguinte: “O nome de Turres Veteres foi-lhe dado provavelmente pelos Godos, e esse mesmo nome traz consigo a idéa de remota antiguidade”.
Pinho Leal, no Portugal Antigo e Moderno, publicado em 1880, no artigo dedicado a Torres Vedras, diz: “O que é certo é ser Torres Vedras uma povoaçăo antiquíssima, e que, com toda a certeza, já existia no tempo dos romanos, o que se prova por quatro lápides com inscriçőes latinas, achadas nas suas vizinhanças, e das quais ainda existem trez - duas na Quinta da Rainha, freguesia da Carvoeira - e uma, embebida na parede exterior da egreja matriz de Mata-căes. É provável que fossem os romanos que lhe dessem o nome Turres Veteres, que os Godos e Árabes lhe conservaram, e que ainda tem, traduzido em portuguez “.
E acrescenta esta nota, em fim de página: “năo sei a razăo porque (sic) a esta villa, sendo muito mais moderna que Torres Novas, se lhe dę o nome de Torres Vedras (Torres Velhas) “.
Alberto Pimentel, no Portugal Pittoresco e Ilustrado. A Estremadura Portuguesa , 2Ş parte, 1908, diz, na página 56: “Os romanos já encontraram povoaçăo, e decerto a fortificaram de novo. Os Godos denominaram-na - Torres Velhas - certamente por a acharem bem defendida com muralhas e torres “. A Grande Enciclopédia Luso-Brasileira, na página 278, começa um extenso artigo dedicado a Torres Vedras, donde respigámos o seguinte: “...de todo este modo é claro que a regiăo foi bastante romanizada e a sua populaçăo deve ter sido nesses tempos relativamente densa. Serăo talvez dessa época e de alguma pov. (que parece ter existido aí) as “turres veteres” que originaram o topónimo Torres Vedras. Os autores que se ocuparam desta vila, ignorando os princípios científicos do método glotológico, reputaram o termo “vedras” do topónimo uma “corrupçăo” popular do termo “velhas” (entre aqueles conta-se Madeira Torres, séc. XVIII-XIX) quando a verdade é outra: trata-se do próprio termo arcaico “vedras” estereotipado, directamente proveniente, se năo do topónimo, ao menos no uso comum, do lat. veteres (ac. turres). Apesar da inteira possibilidade, nada haverá que prove que o topónimo Torres Vedras provém directamente do latim Turres Veteres - ou por outra, nada pode afiançar que Turres Veteres tivesse sido topónimo. O qualificativo “vedras” envolve um sentido impreciso, isto é, năo pode decidir-se se relativo, se absoluto. No caso de relativo, existiam na regiăo outras “torres” por isso “novas”, na época da fixaçăo toponímica, mas é aventuroso pensar precisamente na vila de Torres Novas, que fica bastante longe. Num ponto de vista absoluto, que é o mais aceitável, “vedras” significa tăo somente a alta antiguidade manifesta e, entăo, com o auxílio da arqueologia, será dado supor-se que Turres Veteres foi, realmente, o nome do local e sua pov. evoluindo, pois, na funçăo toponímica, para Torres Vedras. E assim se estereotipando...”.
Memórias de Torres Vedras, colecçăo de textos de vários autores, editada pelo Governo Civil de Lisboa, abre com um escrito de A. Vieira da Mota, publicado no jornal O Torriense, e diz no primeiro parágrafo: «O nome portu-guęs, dado a esta vila, indica claramente uma corrupçăo do antigo Torres Velhas, derivado do latino Turres Veteres com que os povos bárbaros, invasores das Espanhas, a denominavam». Em fim de página, como “nota da redacçăo”, lę-se: «Ao invés, Torres Vedras representa a evoluçăo normal do topónimo latino Turres Veteres, expres-săo que, em vernáculo significava “Torres Velhas” ».
Nesta nossa enumeraçăo de autores e obras, deixámos para o fim, e num lugar de destaque, Madeira Torres e Júlio Vieira porque, é necessário acentuá-lo, tem sido a leitura dos seus escritos, tăo impregnados de boas intençőes e louvável bairrismo, a causa dos maus tratos a que, sob o aspecto etimológico, as actuais “Torres Vedras” tęm sido sujeitas, pela ignorância de uns e pela inconscięncia de outros.
Madeira Torres, na sua Descripçăo Histórica e Económica da Villa e Termo de Torres Vedras, precisamente na parte histórica, capítulo I, trata do nome e situaçăo de Torres Vedras: “O nome portuguez, actualmente dado a esta villa, indica com bastante clareza uma corrupçăo do antigo Torres Velhas, derivado do latim Turres Veteres, com que os povos bárbaros a denominavam...”. Júlio Vieira, na sua obra Torres Vedras Antiga e Moderna, depois de várias consideraçőes sobre as origens da vila e do seu nome, diz, na página 4: “Torres Vedras ou Turres Veteres é uma corrupçăo do latim Turribus Veteribus (Torres Velhas) ou Turris (sic) Veteribus, por que era conhecida no tempo dos romanos...”.
Antes de iniciarmos os comentários ŕs afirmaçőes destes dois autores, temos o dever (gostoso dever) de proclamar, alto e bom som, que eles em nada pretendem ofuscar o inestimável mérito das suas obras: elas săo um fértil tesouro de preciosas informaçőes que muito contribuem para que se saiba alguma coisa sobre a história da nossa terra, que, sem elas, mais mergulhada estaria em denso nevoeiro de cerrada obscuridade.
O primeiro, apetrechado com o “seu” latim eclesiástico mas, como năo podia deixar de ser, naquela época, completamente leigo em matéria de filologia, diz: “...Torres Velhas, derivado do latino Turres Veteres...”. Ora, se é certo que “Torres” derivou de Turres, “Velhas” năo podia, de forma nenhuma, derivar de Veteres. Seria precisa uma corrupçăo demasiado violenta para fazer surgir o grupo palatal lh e a vogal a, e só uma corrupçăo mirabolante poderia levar “Velhas” a Veteres, segundo a imaginaçăo do autor.
O nosso vocábulo “velho”, com o seu feminino “velha”, é o resultado da evoluçăo do adjectivo latino da 1Ş classe, portanto triforme, veculus, vecula, veculum, alternante, com inteira certeza, de vetulus, vetula, vetulum, criado a partir de vetus, veteris, com os sufixos ulus, ula, ulum (na língua latina correspondentes ao nosso sufixo inho, com o significado de carinho ou afecto). Veculus, forma alternante de vetulus, significava, em latim, o velhinho. Do seu acusativo veculum, com a apócope do m final, a síncope do u medial e a consequente palatalizaçăo do grupo cl > lh, resultante da tal queda do u, chegámos, muito naturalmente e sem o mais pequeno odor de corrupçăo, ao nosso actual “velho”, cujo plural feminino - “velhas”-, vai entrar no composto “Torres Velhas”. Vemos, portanto, que velho e velha só tęm de afinidade com veteres o facto de serem a evoluçăo de uma forma alternante de vetulus.
Feito este comentário etimológico, é forçoso dizermos que a notícia histórica também carece de um esclarecimento: os povos bárbaros, ao invadirem as Hespanhas, já encontraram o nome latino Turres Veteras com que continuaram a denominá-la. Se fossem eles a dar-lho, tę-lo-iam feito na sua língua e năo na dos romanos, que submetiam ao seu domínio. Quanto ao segundo dos autores citados, sem o mínimo conhecimento de latim e de Filologia, ainda a informaçăo é mais arrepiante: corrupçăo alguma, por mais violenta que fosse, conseguiria fazer chegar o ablativo Turribus Veteribus a “Torres Vedras” ou Turres Veteres , como ele diz, acrescendo ainda que, no nosso léxico, tanto quanto sabemos, năo há notícia de topónimos derivados do ablativo. Por outro lado, a existęncia do par Turris Veteribus é absolutamente inaceitável por ser constituído por casos inteiramente diferentes. Contudo, a informaçăo histórica de Júlio Vieira “...por que era conhecida no tempo dos romanos”, está inegavelmente certa. Parece que podemos, enfim, começar a concretizar o nosso objectivo: tentar explicar, ŕ luz da etimologia, a origem e respectiva evoluçăo do topónimo Torres Vedras, nome com que os romanos, após a sua fixaçăo na Península Ibérica, passaram a designar a nossa cidade, enquanto a história nos năo provar o contrário.
Para exprimirem a ideia de velho, tinham os romanos os nomes vetulus, vetuli, masculino da 2Ş declinaçăo; vetula vetulae, feminino da 1Ş declinaçăo; vetus, veteris, neutro da 3Ş declinaçăo; e ainda vetulus, vetula, vetulum, adjectivo triforme da 1Ş classe, cuja criaçăo explicámos acima, e que alternava com veculus, vecula, veculum, como já dissemos. Contudo, se nos debruçarmos sobre o actual léxico portuguęs, e também espanhol, deparamos com curiosas formas estereotipadas, cuja explicaçăo etimológica nos obriga a enveredar por um outro caminho...
Se atentarmos, por exemplo, em Torres Vedras, Alhos Vedros, Pontevedra, temos de concluir que as formas adjectivas “Vedras”, “Vedros”, e “Vedra”, năo encontram a sua explicaçăo etimológica senăo a partir de uma raíz comum que só podemos encontrar no adjectivo latino vetus, veteris. Porém, somos levados a pensar que o uso do vocábulo vetus, veteris, talvez pela sua natureza erudita, năo devia estar muito ao alcance das pessoas menos cultas. Assim, utilizando as leis da derivaçăo e a força da analogia, sempre inerentes ŕ plasticizaçăo das línguas vivas, foi criado, com toda a certeza, a partir de vetus, um adjectivo da 1Ş classe - veterus, vetera, veterum - que, pela sua contextura, se enquadrava perfeitamente nos moldes dos adjectivos do tipo bonus, bona, bonum, de uso corrente, portanto, mais familiar. E foi assim que assentou arraiais no léxico latino, embora condenado a uma vida efémera, o sonoroso neologismo, veterus, vetera, veterum.
Verificamos, porém, que, no decorrer dos tempos, os povos latinizados deram preferęncia ao seu irmăo mais velho veculus, vecula, veculum (alternante de vetelus, vetula, vetulum), de cariz mais popular, e foram pondo de parte o jovem veterus, vetera, veterum, que acabou por ser preterido, conservando o ar da sua graça apenas em vocábulos que a escrita, conservadora por natureza, já tinha fixado, tais como (que se nos perdoe a repetiçăo!) Torres Vedras, Alhos Vedros, Pontevedra, considerados formas estereotipadas. Temos de deduzir, por conseguinte, que estăo erradas as explicaçőes dadas até agora (nalguns casos teimosamente) para a provenięncia do segundo elemento do par de vocábulos com que designamos a nossa cidade - Torres Vedras.
Quanto ao primeiro elemento, a afirmaçăo tem validade: Turres > Torres ( u > o ), como cursu- > corso, rumpere > romper, nura- > nora, etc., etc. Entăo... como poderíamos chegar da forma adjectiva latina, vetus, veteris, a “vedra” (Pontevedra), a “Vedros” (Alhos Vedros), ou a “Vedras” (Torres Vedras)? De modo nenhum porque, como é neutro, o adjectivo vetus tem, como acusativo do plural, as formas veteres (para o masculino e o feminino) e vetera (para o neutro), que, de modo algum, poderiam chegar a “vedros”, “vedras” ou “vedra”. Isto porque veteres só poderia evoluir para vedres, e vetera, sendo um acusativo neutro do plural, nunca poderia emparceirar, nem no caso nem no género, com pons, pontis, que no latim era masculino. O francęs conservou-lhe esse género (Le pont), mas o espanhol, ao formar o vocábulo Pontevedra, fez-lhe, tal como o portuguęs, a operaçăo da mudança... Para respondermos cabalmente ŕ pergunta, temos de recorrer ao já historiado veterus, vetera, veterum.
O seu acusativo singular feminino - veteram - deu a forma “ vedra”; o mesmo caso masculino do plural - veteros - deu “vedros”; finalmente, o seu acusativo feminino do plural - veteras - deu “vedras”.
Foneticamente, todos sofreram a sonorizaçăo do t e a síncope do e medial. Em “vedra”, além destes dois fenómenos, deu-se ainda a apócope do m final, fenómeno já generalizado na Itália quando os romanos se fixaram na Península Ibérica.
Estamos certos de que năo erramos, ao afirmarmos que foi assim que se chegou a estas formas - “vedra”, “vedros”, “vedras” - , que a escrita fixou nesse estádio da sua evoluçăo, tornando-se, por isso, estereotipadas. Assim... sujeitemos veteres e turribus veteribus, no que respeita ŕs suas relaçőes etimológicas com Torres Vedras, ŕ lei do ostracismo. Deixemo--los em paz e entregues ŕs funçőes que desempenhariam sob aquelas formas e, dando a César o que é de César, fujamos ŕs adulteraçőes, na certeza de que o caminho certo é: TURRES VETERAS > TORRES VEDRAS